Robert Pirsig (in: "Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas")

domingo, 22 de abril de 2012

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA - DRAUZIO VARELLA NA FOLHA DE S.PAULO




Intolerância religiosa

O fervor religioso é uma arma assustadora, disposta a disparar contra os que pensam de modo diverso

SOU ATEU e mereço o mesmo respeito que tenho pelos religiosos.
A humanidade inteira segue uma religião ou crê em algum ser ou fenômeno transcendental que dê sentido à existência. Os que não sentem necessidade de teorias para explicar a que viemos e para onde iremos são tão poucos que parecem extraterrestres.
Dono de um cérebro com capacidade de processamento de dados incomparável na escala animal, ao que tudo indica só o homem faz conjecturas sobre o destino depois da morte. A possibilidade de que a última batida do coração decrete o fim do espetáculo é aterradora. Do medo e do inconformismo gerado por ela, nasce a tendência a acreditar que somos eternos, caso único entre os seres vivos.
Todos os povos que deixaram registros manifestaram a crença de que sobreviveriam à decomposição de seus corpos. Para atender esse desejo, o imaginário humano criou uma infinidade de deuses e paraísos celestiais. Jamais faltaram, entretanto, mulheres e homens avessos a interferências mágicas em assuntos terrenos. Perseguidos e assassinados no passado, para eles a vida eterna não faz sentido.
Não se trata de opção ideológica: o ateu não acredita simplesmente porque não consegue. O mesmo mecanismo intelectual que leva alguém a crer leva outro a desacreditar.
Os religiosos que têm dificuldade para entender como alguém pode discordar de sua cosmovisão devem pensar que eles também são ateus quando confrontados com crenças alheias.
Que sentido tem para um protestante a reverência que o hindu faz diante da estátua de uma vaca dourada? Ou a oração do muçulmano voltado para Meca? Ou o espírita que afirma ser a reencarnação de Alexandre, o Grande? Para hindus, muçulmanos e espíritas esse cristão não seria ateu?
Na realidade, a religião do próximo não passa de um amontoado de falsidades e superstições. Não é o que pensa o evangélico na encruzilhada quando vê as velas e o galo preto? Ou o judeu quando encontra um católico ajoelhado aos pés da virgem imaculada que teria dado à luz ao filho do Senhor? Ou o politeísta ao ouvir que não há milhares, mas um único Deus?
Quantas tragédias foram desencadeadas pela intolerância dos que não admitem princípios religiosos diferentes dos seus? Quantos acusados de hereges ou infiéis perderam a vida?
O ateu desperta a ira dos fanáticos, porque aceitá-lo como ser pensante obriga-os a questionar suas próprias convicções. Não é outra a razão que os fez apropriar-se indevidamente das melhores qualidades humanas e atribuir as demais às tentações do Diabo. Generosidade, solidariedade, compaixão e amor ao próximo constituem reserva de mercado dos tementes a Deus, embora em nome Dele sejam cometidas as piores atrocidades.
Os pastores milagreiros da TV que tomam dinheiro dos pobres são tolerados porque o fazem em nome de Cristo. O menino que explode com a bomba no supermercado desperta admiração entre seus pares porque obedeceria aos desígnios do Profeta. Fossem ateus, seriam considerados mensageiros de Satanás.
Ajudamos um estranho caído na rua, damos gorjetas em restaurantes aos quais nunca voltaremos e fazemos doações para crianças desconhecidas, não para agradar a Deus, mas porque cooperação mútua e altruísmo recíproco fazem parte do repertório comportamental não apenas do homem, mas de gorilas, hienas, leoas, formigas e muitos outros, como demonstraram os etologistas.
O fervor religioso é uma arma assustadora, sempre disposta a disparar contra os que pensam de modo diverso. Em vez de unir, ele divide a sociedade -quando não semeia o ódio que leva às perseguições e aos massacres.
Para o crente, os ateus são desprezíveis, desprovidos de princípios morais, materialistas, incapazes de um gesto de compaixão, preconceito que explica por que tantos fingem crer no que julgam absurdo.
Fui educado para respeitar as crenças de todos, por mais bizarras que a mim pareçam. Se a religião ajuda uma pessoa a enfrentar suas contradições existenciais, seja bem-vinda, desde que não a torne intolerante, autoritária ou violenta.
Quanto aos religiosos, leitor, não os considero iluminados nem crédulos, superiores ou inferiores, os anos me ensinaram a julgar os homens por suas ações, não pelas convicções que apregoam.

domingo, 8 de abril de 2012

NÃO À RELIGIÃO NAS ESCOLAS: EDITORIAL DO JORNAL 'FOLHA DE S.PAULO'



Religião na escola

Estado deve impedir práticas confessionais em sala de aula na rede pública, não para reprimir a fé, mas para garantir liberdade religiosa

Há quase cem anos, um adolescente mineiro foi expulso do colégio de jesuítas onde estudava. Seu nome: Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

O motivo da expulsão também ganhou notoriedade: a "insubordinação mental" de que o acusavam tornou-se, com o passar dos anos, uma das muitas distinções da biografia do poeta.

Também mineiro, e com a mesma idade (17 anos) que tinha o escritor naquele episódio, o estudante Ciel Vieira "insubordinou-se", por assim dizer, diante de uma professora de geografia do seu colégio, na cidade de Miraí, a 355 km de Belo Horizonte.

A professora tinha por hábito iniciar as aulas rezando o Padre Nosso. Ateu, o estudante não acompanhou a classe na oração. A professora reagiu, dizendo ao jovem que ele não tinha Deus no coração e nunca seria nada na vida.

O caso ganhou repercussão, dando respaldo à atitude do estudante -que, com razão, não vê motivo para ser obrigado a rezar numa escola da rede pública.

Seria mais confortável, é claro, fingir uma adesão superficial ao rito. A atitude de independência do estudante se inscreve, todavia, num clima ideológico e cultural que se diferencia dos padrões de indiferença e acomodação típicos do Brasil de algumas décadas atrás.

Dos protestos contra a presença de crucifixos em repartições públicas ao questionamento judicial, por parte da União, dos critérios que devem reger o ensino religioso nas escolas, avolumam-se iniciativas para afirmar com mais nitidez o princípio da laicidade do Estado.

Ao mesmo tempo, vê-se em toda parte uma tendência, se não para o fundamentalismo religioso, pelo menos no rumo de um proselitismo militante. É uma manifestação legítima, desde que não resvale para a imposição ao público de valores e práticas cuja adoção constitui matéria de foro íntimo.

Denominações cristãs diversas fazem valer seu poder como mecanismos eleitorais. Bancadas parlamentares religiosas se organizaram em todos os níveis da Federação. A TV aberta promove intensamente este ou aquele credo.

Por demagogia ou convicção, surgem mesmo casos em que políticos quebram explicitamente o princípio da neutralidade do Estado em questões religiosas. Foi o que aconteceu em Ilhéus, onde vereadores e prefeito tornaram obrigatória a oração do Pai Nosso nas escolas municipais.

Casos assim podem parecer localizados e desimportantes. Todavia, a ideia de que o Estado não deve se imiscuir nas questões de fé tem uma relevância cada vez maior.

Não se trata de uma questão de militância ateísta -o que está em jogo é a liberdade de todas as religiões, indistintamente, para conviverem de forma pacífica, sem favor nem perseguição do poder público.

(Fonte: FOLHA DE S.PAULO, mas também encontrado em: http://www.foradoarmario.net/2012/04/religiao-na-escola-folha-de-sao-paulo.html )